segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Quando a arte desperta uma cidade dentro de nós


Nossa memória é engraçada. Quando vemos alguma imagem nova, que nos lembra tempos antigos, tempos da infância mesmo, rapidamente fazemos a junção entre esta nova imagem e nosso acervo pessoal, gerando uma terceira imagem, que nada mais é do que uma recriação do passado a partir de lembranças nossas e registros dos outros.
Foi isso que aconteceu comigo quando vi pela primeira vez os quadros do pintor Milton Ribeiro. Era uma noite fria, eu visitava uma exposição de arte, e me deparei com pinturas que mostravam Brasília em seus primeiros anos. Passeei pelas telas como quem faz uma viagem pela memória afetiva. Os primeiros barracões na avenida W-3 Norte, que abrigavam o comércio insipiente, a fonte luminosa da Torre de TV, os alegres painéis de latão anunciando de tudo: pão, cerveja, roupas, marmita, costureira.
No meio da exposição um quadro me fez demorar. Não se destacava entre os demais. De tons escuros, com apenas uma mancha iluminada no canto direito, mas que era como uma fraca luz de um abajur em um quarto escuro, iluminando melhor os objetos próximos e deixando na penumbra o que estava mais distante.
O quadro mostrava uma festa noturna e misturava o amarelo das lâmpadas com o alaranjado de uma grande fogueira. Em volta dessa mancha, o claro-escuro da noite, prédios de uma quadra residencial de Brasília, e no lado oposto do quadro, o verde-escuro do cerrado iluminado pela luz da festa e dos apartamentos, e também por uma Lua minguante. Era sem dúvida uma festa junina, que até hoje é uma tradição na cidade, mas que em seus primeiros anos era um evento social único.
Uma plaqueta ao lado do quadro me dizia que o pintor retratava uma festa junina na superquadra 312 Norte, onde morei a maior parte da minha vida. O ano era 1969. Naquele tempo eu era apenas uma criança, mas certamente estava presente naquela festa, e por extensão também “dentro” do quadro de Milton Ribeiro. Em 1969 ninguém faltava a uma festa junina, a não ser que estivesse preso, e naquele ano de 69 muita gente boa estava presa, ou por doença grave. 
Aquelas imagens me levaram a um turbilhão de lembranças.
Vi no quadro crianças brincando perto da fogueira, moças e rapazes dançando quadrilha. Lembrei dos amigos que desapareceram, dos amores que começaram ali, como brincadeira de criança. O quadro de Milton Ribeiro me fez relembrar uma Brasília que andava adormecida dentro de mim.
Depois fiquei imaginando o pintor no alto de uma colina na Asa Norte, em uma noite ainda mais fria que as atuais noites de inverno em Brasília, olhando aquela festa de longe e pintando o seu quadro, guardando dentro de sua obra todas aquelas pessoas, e a pulsação de uma cidade que ainda lutava para existir.
Uma foto daquela festa, como tantas que foram tiradas e guardadas, mostraria com mais detalhes os personagens, o ambiente e as roupas daquele tempo. Mas só aquele quadro foi capaz de revolver a minha memória com tanta força, me levando por inteiro àquele ano e àquele local.
E se aquela Brasília da minha infância, semipovoada e cheia de mistérios não existe mais, pois cresceu e virou cidade grande, com suas vantagens e problemas, eu tive a sorte de ter vivido e guardado dentro de mim essas duas Brasílias. 

O silêncio e a palavra



O silêncio manda cartas
Vai à missa, compra pão

A palavra dispara e-mails
Posta fotos, enche o porão

O silêncio manda rosas
Para não pedir perdão

A palavra grita aos quatro ventos
Quando perde a razão

O silêncio vai de bonde
A palavra de avião

O silêncio soluça e chora
A palavra diz que não

O silêncio é de ouro
A palavra é de latão

O silêncio
Esconde sempre um fundo falso

A palavra
Mesmo quando finge, é comunhão

Cinquenta vezes Brasília


Não se faz uma cidade em quatro anos
nem mesmo em 50.
Uma cidade se faz a cada dia
com seu povo, sua gente.
Mas juntados todos os dias,
de todos os anos
e todas as gentes,
a cidade vira Brasília
a cidade vira presente.



sábado, 18 de dezembro de 2010

Anamnese


Não lembrava de outro inverno tão frio como o deste ano. Sempre ouvira falar que o frio nesta cidade fora muito maior no início, quando tudo era um grande descampado, o cerrado tomando conta dos horizontes, uns grandes vazios de terra esperando as máquinas e os homens para começar alguma obra, uns poucos prédios ilhados aqui e ali ao longo de quilômetros. “Aquilo sim era frio”, diziam os mais velhos, com estranho saudosismo. E quando o frio diminuía, era a vez dos vendavais sem chuva, que empurravam as folhas secas para as ruas, um balé engraçado daqueles restos da estação patinando pelo asfalto das quadras, arrastadas pelos ventos que vinham do sul. Era tempo também dos grandes redemoinhos de terra vermelha, chamados Lacerdinhas, que sujavam toda roupa estendida nos varais e provocavam a correria das crianças para debaixo dos blocos de apartamentos. “Isso eu me lembro”. 
Sua lembrança mais antiga, no entanto, não era da cidade onde nascera e vivera a vida inteira, mas de umas férias forçadas, por assim dizer, que passara no Recife, quando mal completara quatro anos. O pai no estrangeiro, por uma temporada, a mãe não teve dúvidas, pegou os dois filhos e partiu para a casa da outra mãe, onde passou todo o verão e mais um pouco, até o regresso do marido. Que ficar sozinha naquela cidade com duas crianças, uma de colo, meu avô não aceitava, não bastasse o casamento contrariado, agora o rapaz se retirava para Washington, para fazer um curso pela polícia, e a filha não podia ficar sozinha numa cidade de candangos, e falava candangos como quem falasse em bandidos ou coisa pior. A mãe se admirava das lembranças, pois que ele era muito pequeno, mas ele lembrava sim, tinha certeza, do tumulto de crianças nas ruas do bairro de Casa Forte, das brincadeiras grosseiras que aprendeu com aqueles meninos mais vividos, do medo que sentiu quando lhe colocaram um sapo nas mãos, da lagartixa amarrada na ponta linha, que rodava sem parar, e depois era solta no quarto das meninas.
 Já as lembranças sobre a sua própria cidade, a mais remota era de uma grande festa popular com carro do Corpo de Bombeiros e tudo, muita gente nas ruas, esperando a passagem dos heróis da Copa de 70. O pai o levou, colocou-o acima dos ombros para ver os craques, mas no lugar do escrete canarinho o que ele viu foram homens de terno, sorridentes e acenando para a multidão, e para um menino de seis anos aquilo não era a seleção. Mas lembra sim, apesar da decepção inicial, do Jairzinho e do Piazza, segurando juntos a taça, esses dois ele lembra, pois eram as figurinhas que faltavam no álbum, e que só chegaram depois da copa terminada. (continua na próxima semana)