Nossa memória é engraçada. Quando vemos alguma imagem nova, que nos lembra tempos antigos, tempos da infância mesmo, rapidamente fazemos a junção entre esta nova imagem e nosso acervo pessoal, gerando uma terceira imagem, que nada mais é do que uma recriação do passado a partir de lembranças nossas e registros dos outros.
Foi isso que aconteceu comigo quando vi pela primeira vez os quadros do pintor Milton Ribeiro. Era uma noite fria, eu visitava uma exposição de arte, e me deparei com pinturas que mostravam Brasília em seus primeiros anos. Passeei pelas telas como quem faz uma viagem pela memória afetiva. Os primeiros barracões na avenida W-3 Norte, que abrigavam o comércio insipiente, a fonte luminosa da Torre de TV, os alegres painéis de latão anunciando de tudo: pão, cerveja, roupas, marmita, costureira.
No meio da exposição um quadro me fez demorar. Não se destacava entre os demais. De tons escuros, com apenas uma mancha iluminada no canto direito, mas que era como uma fraca luz de um abajur em um quarto escuro, iluminando melhor os objetos próximos e deixando na penumbra o que estava mais distante.
O quadro mostrava uma festa noturna e misturava o amarelo das lâmpadas com o alaranjado de uma grande fogueira. Em volta dessa mancha, o claro-escuro da noite, prédios de uma quadra residencial de Brasília, e no lado oposto do quadro, o verde-escuro do cerrado iluminado pela luz da festa e dos apartamentos, e também por uma Lua minguante. Era sem dúvida uma festa junina, que até hoje é uma tradição na cidade, mas que em seus primeiros anos era um evento social único.
Uma plaqueta ao lado do quadro me dizia que o pintor retratava uma festa junina na superquadra 312 Norte, onde morei a maior parte da minha vida. O ano era 1969. Naquele tempo eu era apenas uma criança, mas certamente estava presente naquela festa, e por extensão também “dentro” do quadro de Milton Ribeiro. Em 1969 ninguém faltava a uma festa junina, a não ser que estivesse preso, e naquele ano de 69 muita gente boa estava presa, ou por doença grave.
Aquelas imagens me levaram a um turbilhão de lembranças.
Vi no quadro crianças brincando perto da fogueira, moças e rapazes dançando quadrilha. Lembrei dos amigos que desapareceram, dos amores que começaram ali, como brincadeira de criança. O quadro de Milton Ribeiro me fez relembrar uma Brasília que andava adormecida dentro de mim.
Depois fiquei imaginando o pintor no alto de uma colina na Asa Norte, em uma noite ainda mais fria que as atuais noites de inverno em Brasília, olhando aquela festa de longe e pintando o seu quadro, guardando dentro de sua obra todas aquelas pessoas, e a pulsação de uma cidade que ainda lutava para existir.
Uma foto daquela festa, como tantas que foram tiradas e guardadas, mostraria com mais detalhes os personagens, o ambiente e as roupas daquele tempo. Mas só aquele quadro foi capaz de revolver a minha memória com tanta força, me levando por inteiro àquele ano e àquele local.
E se aquela Brasília da minha infância, semipovoada e cheia de mistérios não existe mais, pois cresceu e virou cidade grande, com suas vantagens e problemas, eu tive a sorte de ter vivido e guardado dentro de mim essas duas Brasílias.